segunda-feira, 17 de dezembro de 2012


2.1 O potencial de manipulação da imagem. 9

Uma “coisa” filmada não é a “coisa” em si mesma, é uma representação daquela coisa. Atribui-se normalmente aos documentários a característica intrínseca de representação da realidade no sentido de ser um meio de reprodução dos contornos materiais concretos da realidade, de caráter objetivo10. Quanto ao desenho animado, não há nada mais ficcional que criar imagens a partir do “nada”, apenas a partir de uma referência. Daí, a facilidade em associá-lo à ficção, considerando ser o seu referencial a pura imaginação, de caráter subjetivo.
O registro da essência dos fatos (não o objeto em si, mas sua significação) pode se dar tanto pelo cinema de animação quanto pelo documentário e em ambos os casos, a autenticidade ou veracidade do conteúdo apresentado pode ser questionado, independente de sua objetividade ou subjetividade o que cria a necessidade de buscar informações exteriores ao filme.
Em cinema, a escolha de quando e como o objeto será filmado é uma questão de ponto de vista. Sob este aspecto, o cinema é mais uma forma de expressão que um meio de reprodução. Técnicas de montagem permitem o controle da imagem a ser exibida e, por sua vez, a manipulação emocional da realidade. Por mais que a imagem comprove que havia algo em frente à câmera no momento da exposição, a escolha do ângulo, enquadramento, iluminação etc., representam um ponto de vista específico dentre vários outros


9 Texto produzido a partir da disciplina do curso de Mestrado em Artes Visuais/UFMG “O cinema de animação e o documentário na experiência do National Film Board do Canadá” ministrada pelo Prof. Dr. Heitor Capuzzo Filho, em setembro de 2004.
10 Cf. TADDEI, Leitura estrutural do filme, 1981, p. 16-25 



possíveis. A própria composição em seqüência do conjunto dessas imagens, pode transmitir idéias opostas, de acordo com a maneira como elas se organizam. É possível extrair do mesmo conteúdo significações pejorativas ou positivistas, dependendo do contexto em que se insere na narrativa tal conteúdo.
A ilusão de movimento no cinema de animação, mais do que reproduzido, precisa ser sinteticamente inventado frame a frame. Num sentido radical, as imagens live-action também são estruturadas na película através da seqüência de fotogramas, por isso, quando alguns frames são retirados, a imagem reproduzida deixa de coincidir com sua referência material.
Se a reprodução pura e simples não garante nenhuma autenticidade histórica, nesta perspectiva, a reprodução torna-se um meio de representação, não da coisa em si mesma, mas da idéia ou essência da coisa, segundo o olhar do autor. A imagem da “realidade” pode ser forjada, sem por isso estar longe de seu significado essencial. Exemplo: Tendo por objetivo filmar o cotidiano dos esquimós (sem restringir um grupo ou individuo específicos), pode-se pedir a um deles que “finja” estar pescando e depois filmá-lo já com sua presa em mãos. Este é um recurso de registro da realidade. Seria mais complexo obter o controle no momento exato em que o esquimó conseguiria capturar sua presa. Embora tudo tenha sido encenado, a representação de uma faceta da vida dos esquimós com possibilidades de leitura poética, não foi deixada de lado. Do mesmo modo, quando a animação se torna um meio de reprodução sintética da realidade, tendo-a como referência, ela pode se manter fiel à idéia de uma forma poética (a poética evidencia a presença de um autor por trás da montagem). O mesmo episódio da vida dos esquimós poderia ser

representado através do cinema de animação. O que estaria sendo reproduzido seria uma faceta da vida dos esquimós e não da vida (retrato fiel) de um determinado esquimó ou grupo específico de esquimós. Daí o caráter ilustrativo que ambas as formas de representação adquirem.
Alguns filmes documentários podem apresentar certos pontos em comum, tais como, conteúdo poético e caráter ilustrativo11, ou seja, a representação (não reprodução) de uma referência real através de imagens cujo conteúdo pode ser manipulado emocionalmente tanto através da montagem e encenação, quanto através da animação. Exemplificando, podemos citar o desenho animado feito pelos estúdios Walt Disney, sob a encomenda do exército americano12. O filme inicia contando a história da aviação até chegar num ponto em que, através de gráficos, setas e mapas, sintetiza a idéia das estratégias de guerra que deveriam ser usadas contra a Alemanha Nazista em função de sua localização geográfica privilegiada: Hitler tinha a vantagem de repor rapidamente seu pelotão de guerra em curtas distâncias e por terra. Esse desenho animado apresenta de forma didática as vantagens do ataque aéreo efetuado pelas forças armadas americanas sempre usando uma estética atraente e positivista para elevar o moral e a confiança na vitória contra as forças do Eixo.
Nota-se que um dos fatores que abalam a crença na autenticidade do conteúdo apresentado cinematograficamente, é a artificialidade presente na

11 : esclarecedor, elucidativo; Ilustração: ato ou efeito de ilustrar (explicar); conjunto de conhecimentos; saber [...]. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Obs.: Ainda há casos de discrepância entre ilustração didática e literária. A estética da ilustração literária e a linguagem da ilustração didática se aproximam muito do cinema de animação tanto clássico como experimental. Questões mercadológicas editoriais restringem o uso do termo quando para fins de análise estética e conceitual.
12 Conforme animação exibida e comentada por CAPUZZO. Cf. nota 6. 

atuação frente às câmeras. Embora seja possível simular a ‘realidade’, o contrário também ocorre. Crê-se na síntese de determinado assunto pela técnica ilustrativa empregada em sua apresentação, considerando-a correspondente legítima da realidade13. Sendo assim filmar uma encenação representativa de um episódio, ou fazê-lo através da animação abre caminho para formas diferentes de se fazer a mesma coisa: manipular o significado da imagem aproveitando-se deste paradoxo comunicacional entre imagem objetiva/subjetiva, referencial/ficcional.
Um aspecto preocupante que tanto o documentário quanto o cinema de ficção possuem, é o potencial de manipulação sutil da imagem de maneira negativa. Do ponto de vista da produção, é possível fazer com que algo terrível pareça normal aos olhos ingênuos de um determinado público alvo. Também é possível destruir valores éticos e humanistas deturpando-lhes o significado. O caráter ambíguo da imagem cria duas possibilidades no cinema: ajudar a destruir ou salvaguardar um conceito, independente do fato de o conceito ser bom ou ruim. Sempre houve quem se aproveitasse disso através do simbolismo negativo, fazendo uso de imagens que já carregam em si significados polêmicos. Ou da banalização do significado ao utilizar imagens consideras oficiais ou sagradas de forma debochada.
Nos anos 1930 e 1940, a Alemanha nazista utilizou amplamente do cinema como meio de propaganda e de manipulação de massas; e chegou a fazer os primeiros testes para utilizar o meio de comunicação televisivo em rede nacional, prevendo seu longo alcance em prol de seus interesses

13 Observação baseada na palestra “Documentário: subjetividade versus objetividade” ofertada pela pós- graduação do departamento de comunicação social da FAFICH/UFMG, ministrada pelo Prof. Dr. José Francisco Serafim, da faculdade de comunicação da UFBA, no dia 05 de abril de 2004.

propagandistas. Durante a Segunda Guerra, após o ataque a Pearl Harbour, que retirou os EUA de sua política isolacionista de não envolvimento na conflagração européia, tornada mundial, não poupando as Américas, o cinema norte-americano foi chamado pelo governo a colaborar no esforço de guerra. O exército contratou os melhores profissionais do cinema para participarem da guerra de propaganda contra o Eixo, encomendando-lhes filmes e desenhos animados que transmitissem a idéia de que era preciso revidar ao ataque e de que a “guerra é um mal necessário”; os animadores deveriam criar uma imagem pejorativa e debochada dos inimigos a fim de elevar a moral dos convocados a lutar no front e convencer a opinião pública nacional de que a vitória seria mais fácil do que se imaginava. Era necessário deter Hitler e impedir o domínio nazista do mundo; contudo, o conteúdo dessas propagandas animadas vem sendo questionada, fora do contexto da guerra, enquanto política de manipulação de massas.
Os propagandistas nazistas e, em reação, também os propagandistas antinazistas basearam seu imaginário em estigmas que perduram até hoje causando prejuízo à vida individual e coletiva. Tanto nos filmes nazistas, quanto nos filmes antinazistas, os soldados eram representados com glamour, como heróis de guerra premiados com fama, dinheiro e mulheres, quando na realidade poucos retornavam inteiros e com vida das frentes de batalha.
A coletânea de curtas-metragens Cartoon Scandals14, que inclui desenhos produzidos e exibidos nas décadas de 1930 e 1940, atualmente banidos da tv, mostravam os ataques terroristas de Superman15 ao exército

14 Cartoon Scandals, banned from TV: A study of violence, racism, sex, and war in cartoons. Compiled by Sandy Oliveri, 1987.
15 Superman: ́Eleventh Hour ́ (1942, Dan Gordon) 
http://www.dailymotion.com/video/xe59cz_superman-original-cartoon-the-eleve_creation#.UM-Mr3Pjku4


japonês; cenas de violência em desenhos aparentemente inofensivos; japoneses16 e negros sendo retratados de forma depreciativa17, disseminando preconceitos atualmente observados no comportamento social de certos grupos favoráveis a segregação. É, portanto, necessário refletir sobre esses aspectos da manipulação da imagem durante o processo de concepção da mesma a fim de não perpetuar inadvertidamente pensamentos preconceituosos, inconseqüentes.
Saber fazer uma leitura crítica (e não ingênua) e saber ensinar a ler o filme18 contribui para que tenhamos consciência da amplitude e poder de influência que a imagem em movimento possui. Tanto do ponto de vista de quem assiste quanto do ponto de vista de quem produz cinema.
Embora esteja intimamente relacionado com as questões de forma e conteúdo, o departamento de arte não tem a pretensão de se considerar o único responsável pelo sucesso do filme, pois por estar a serviço da linguagem cinematográfica, há diversos departamentos envolvidos, sob a supervisão do diretor. O que se cria visualmente será editado e outros elementos serão adicionados de forma que o resultado final seja a conjugação de tais elementos, em movimento.
20

16 ́Tokio Jokio ́ (1943, Norm McCable)
17 ́Scrub me Mama with a Boogie Beat ́ (1941, Walter Lantz); All This and Rabbit Stew (1941, Tex Avery).
18 ECO, Sobre os espelhos e outros ensaios, 1989. 



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