2.1 O potencial de manipulação da imagem. 9
Uma “coisa” filmada não é a “coisa” em si mesma, é uma representação
daquela coisa. Atribui-se normalmente aos documentários a característica
intrínseca de representação da realidade no sentido de ser um meio de
reprodução dos contornos materiais concretos da realidade, de caráter
objetivo10. Quanto ao desenho animado, não há nada mais ficcional que criar
imagens a partir do “nada”, apenas a partir de uma referência. Daí, a facilidade
em associá-lo à ficção, considerando ser o seu referencial a pura imaginação,
de caráter subjetivo.
O registro da essência dos fatos (não o objeto em si, mas sua
significação) pode se dar tanto pelo cinema de animação quanto pelo
documentário e em ambos os casos, a autenticidade ou veracidade do
conteúdo apresentado pode ser questionado, independente de sua objetividade
ou subjetividade o que cria a necessidade de buscar informações exteriores ao
filme.
Em cinema, a escolha de quando e como o objeto será filmado é uma
questão de ponto de vista. Sob este aspecto, o cinema é mais uma forma de
expressão que um meio de reprodução. Técnicas de montagem permitem o
controle da imagem a ser exibida e, por sua vez, a manipulação emocional da
realidade. Por mais que a imagem comprove que havia algo em frente à
câmera no momento da exposição, a escolha do ângulo, enquadramento,
iluminação etc., representam um ponto de vista específico dentre vários outros
9 Texto produzido a partir da disciplina do curso de Mestrado em Artes Visuais/UFMG “O cinema de
animação e o documentário na experiência do National Film Board do Canadá” ministrada pelo Prof. Dr.
Heitor Capuzzo Filho, em setembro de 2004.
10 Cf. TADDEI, Leitura estrutural do filme, 1981, p. 16-25
possíveis. A própria composição em seqüência do conjunto dessas imagens,
pode transmitir idéias opostas, de acordo com a maneira como elas se
organizam. É possível extrair do mesmo conteúdo significações pejorativas ou
positivistas, dependendo do contexto em que se insere na narrativa tal
conteúdo.
A ilusão de movimento no cinema de animação, mais do que reproduzido,
precisa ser sinteticamente inventado frame a frame. Num sentido radical, as
imagens live-action também são estruturadas na película através da seqüência
de fotogramas, por isso, quando alguns frames são retirados, a imagem
reproduzida deixa de coincidir com sua referência material.
Se a reprodução pura e simples não garante nenhuma autenticidade
histórica, nesta perspectiva, a reprodução torna-se um meio de representação,
não da coisa em si mesma, mas da idéia ou essência da coisa, segundo o
olhar do autor. A imagem da “realidade” pode ser forjada, sem por isso estar
longe de seu significado essencial. Exemplo: Tendo por objetivo filmar o
cotidiano dos esquimós (sem restringir um grupo ou individuo específicos),
pode-se pedir a um deles que “finja” estar pescando e depois filmá-lo já com
sua presa em mãos. Este é um recurso de registro da realidade. Seria mais
complexo obter o controle no momento exato em que o esquimó conseguiria
capturar sua presa. Embora tudo tenha sido encenado, a representação de
uma faceta da vida dos esquimós com possibilidades de leitura poética, não foi
deixada de lado. Do mesmo modo, quando a animação se torna um meio de
reprodução sintética da realidade, tendo-a como referência, ela pode se manter
fiel à idéia de uma forma poética (a poética evidencia a presença de um autor
por trás da montagem). O mesmo episódio da vida dos esquimós poderia ser
representado através do cinema de animação. O que estaria sendo
reproduzido seria uma faceta da vida dos esquimós e não da vida (retrato fiel)
de um determinado esquimó ou grupo específico de esquimós. Daí o caráter
ilustrativo que ambas as formas de representação adquirem.
Alguns filmes documentários podem apresentar certos pontos em comum,
tais como, conteúdo poético e caráter ilustrativo11, ou seja, a representação
(não reprodução) de uma referência real através de imagens cujo conteúdo
pode ser manipulado emocionalmente tanto através da montagem e
encenação, quanto através da animação. Exemplificando, podemos citar o
desenho animado feito pelos estúdios Walt Disney, sob a encomenda do
exército americano12. O filme inicia contando a história da aviação até chegar
num ponto em que, através de gráficos, setas e mapas, sintetiza a idéia das
estratégias de guerra que deveriam ser usadas contra a Alemanha Nazista em
função de sua localização geográfica privilegiada: Hitler tinha a vantagem de
repor rapidamente seu pelotão de guerra em curtas distâncias e por terra. Esse
desenho animado apresenta de forma didática as vantagens do ataque aéreo
efetuado pelas forças armadas americanas sempre usando uma estética
atraente e positivista para elevar o moral e a confiança na vitória contra as
forças do Eixo.
Nota-se que um dos fatores que abalam a crença na autenticidade do
conteúdo apresentado cinematograficamente, é a artificialidade presente na
11 : esclarecedor, elucidativo; Ilustração: ato ou efeito de ilustrar (explicar); conjunto de
conhecimentos; saber [...]. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Obs.: Ainda há casos de
discrepância entre ilustração didática e literária. A estética da ilustração literária e a linguagem da
ilustração didática se aproximam muito do cinema de animação tanto clássico como experimental.
Questões mercadológicas editoriais restringem o uso do termo quando para fins de análise estética e
conceitual.
12 Conforme animação exibida e comentada por CAPUZZO. Cf. nota 6.
atuação frente às câmeras. Embora seja possível simular a ‘realidade’, o
contrário também ocorre. Crê-se na síntese de determinado assunto pela
técnica ilustrativa empregada em sua apresentação, considerando-a
correspondente legítima da realidade13. Sendo assim filmar uma encenação
representativa de um episódio, ou fazê-lo através da animação abre caminho
para formas diferentes de se fazer a mesma coisa: manipular o significado da
imagem aproveitando-se deste paradoxo comunicacional entre imagem
objetiva/subjetiva, referencial/ficcional.
Um aspecto preocupante que tanto o documentário quanto o cinema de ficção possuem, é o potencial de manipulação sutil da imagem de maneira negativa. Do ponto de vista da produção, é possível fazer com que algo terrível pareça normal aos olhos ingênuos de um determinado público alvo. Também é possível destruir valores éticos e humanistas deturpando-lhes o significado. O caráter ambíguo da imagem cria duas possibilidades no cinema: ajudar a destruir ou salvaguardar um conceito, independente do fato de o conceito ser bom ou ruim. Sempre houve quem se aproveitasse disso através do simbolismo negativo, fazendo uso de imagens que já carregam em si significados polêmicos. Ou da banalização do significado ao utilizar imagens consideras oficiais ou sagradas de forma debochada.
Nos anos 1930 e 1940, a Alemanha nazista utilizou amplamente do cinema como meio de propaganda e de manipulação de massas; e chegou a fazer os primeiros testes para utilizar o meio de comunicação televisivo em rede nacional, prevendo seu longo alcance em prol de seus interesses
13 Observação baseada na palestra “Documentário: subjetividade versus objetividade” ofertada pela pós- graduação do departamento de comunicação social da FAFICH/UFMG, ministrada pelo Prof. Dr. José Francisco Serafim, da faculdade de comunicação da UFBA, no dia 05 de abril de 2004.
Um aspecto preocupante que tanto o documentário quanto o cinema de ficção possuem, é o potencial de manipulação sutil da imagem de maneira negativa. Do ponto de vista da produção, é possível fazer com que algo terrível pareça normal aos olhos ingênuos de um determinado público alvo. Também é possível destruir valores éticos e humanistas deturpando-lhes o significado. O caráter ambíguo da imagem cria duas possibilidades no cinema: ajudar a destruir ou salvaguardar um conceito, independente do fato de o conceito ser bom ou ruim. Sempre houve quem se aproveitasse disso através do simbolismo negativo, fazendo uso de imagens que já carregam em si significados polêmicos. Ou da banalização do significado ao utilizar imagens consideras oficiais ou sagradas de forma debochada.
Nos anos 1930 e 1940, a Alemanha nazista utilizou amplamente do cinema como meio de propaganda e de manipulação de massas; e chegou a fazer os primeiros testes para utilizar o meio de comunicação televisivo em rede nacional, prevendo seu longo alcance em prol de seus interesses
13 Observação baseada na palestra “Documentário: subjetividade versus objetividade” ofertada pela pós- graduação do departamento de comunicação social da FAFICH/UFMG, ministrada pelo Prof. Dr. José Francisco Serafim, da faculdade de comunicação da UFBA, no dia 05 de abril de 2004.
propagandistas. Durante a Segunda Guerra, após o ataque a Pearl Harbour,
que retirou os EUA de sua política isolacionista de não envolvimento na
conflagração européia, tornada mundial, não poupando as Américas, o cinema
norte-americano foi chamado pelo governo a colaborar no esforço de guerra. O
exército contratou os melhores profissionais do cinema para participarem da
guerra de propaganda contra o Eixo, encomendando-lhes filmes e desenhos
animados que transmitissem a idéia de que era preciso revidar ao ataque e de
que a “guerra é um mal necessário”; os animadores deveriam criar uma
imagem pejorativa e debochada dos inimigos a fim de elevar a moral dos
convocados a lutar no front e convencer a opinião pública nacional de que a
vitória seria mais fácil do que se imaginava. Era necessário deter Hitler e
impedir o domínio nazista do mundo; contudo, o conteúdo dessas propagandas
animadas vem sendo questionada, fora do contexto da guerra, enquanto
política de manipulação de massas.
Os propagandistas nazistas e, em reação, também os propagandistas antinazistas basearam seu imaginário em estigmas que perduram até hoje causando prejuízo à vida individual e coletiva. Tanto nos filmes nazistas, quanto nos filmes antinazistas, os soldados eram representados com glamour, como heróis de guerra premiados com fama, dinheiro e mulheres, quando na realidade poucos retornavam inteiros e com vida das frentes de batalha.
A coletânea de curtas-metragens Cartoon Scandals14, que inclui desenhos produzidos e exibidos nas décadas de 1930 e 1940, atualmente banidos da tv, mostravam os ataques terroristas de Superman15 ao exército
14 Cartoon Scandals, banned from TV: A study of violence, racism, sex, and war in cartoons. Compiled by Sandy Oliveri, 1987.
15 Superman: ́Eleventh Hour ́ (1942, Dan Gordon)
http://www.dailymotion.com/video/xe59cz_superman-original-cartoon-the-eleve_creation#.UM-Mr3Pjku4
Os propagandistas nazistas e, em reação, também os propagandistas antinazistas basearam seu imaginário em estigmas que perduram até hoje causando prejuízo à vida individual e coletiva. Tanto nos filmes nazistas, quanto nos filmes antinazistas, os soldados eram representados com glamour, como heróis de guerra premiados com fama, dinheiro e mulheres, quando na realidade poucos retornavam inteiros e com vida das frentes de batalha.
A coletânea de curtas-metragens Cartoon Scandals14, que inclui desenhos produzidos e exibidos nas décadas de 1930 e 1940, atualmente banidos da tv, mostravam os ataques terroristas de Superman15 ao exército
14 Cartoon Scandals, banned from TV: A study of violence, racism, sex, and war in cartoons. Compiled by Sandy Oliveri, 1987.
15 Superman: ́Eleventh Hour ́ (1942, Dan Gordon)
http://www.dailymotion.com/video/xe59cz_superman-original-cartoon-the-eleve_creation#.UM-Mr3Pjku4
japonês; cenas de violência em desenhos aparentemente inofensivos;
japoneses16 e negros sendo retratados de forma depreciativa17, disseminando
preconceitos atualmente observados no comportamento social de certos
grupos favoráveis a segregação. É, portanto, necessário refletir sobre esses
aspectos da manipulação da imagem durante o processo de concepção da
mesma a fim de não perpetuar inadvertidamente pensamentos
preconceituosos, inconseqüentes.
Saber fazer uma leitura crítica (e não ingênua) e saber ensinar a ler o filme18 contribui para que tenhamos consciência da amplitude e poder de influência que a imagem em movimento possui. Tanto do ponto de vista de quem assiste quanto do ponto de vista de quem produz cinema.
Embora esteja intimamente relacionado com as questões de forma e conteúdo, o departamento de arte não tem a pretensão de se considerar o único responsável pelo sucesso do filme, pois por estar a serviço da linguagem cinematográfica, há diversos departamentos envolvidos, sob a supervisão do diretor. O que se cria visualmente será editado e outros elementos serão adicionados de forma que o resultado final seja a conjugação de tais elementos, em movimento.
Saber fazer uma leitura crítica (e não ingênua) e saber ensinar a ler o filme18 contribui para que tenhamos consciência da amplitude e poder de influência que a imagem em movimento possui. Tanto do ponto de vista de quem assiste quanto do ponto de vista de quem produz cinema.
Embora esteja intimamente relacionado com as questões de forma e conteúdo, o departamento de arte não tem a pretensão de se considerar o único responsável pelo sucesso do filme, pois por estar a serviço da linguagem cinematográfica, há diversos departamentos envolvidos, sob a supervisão do diretor. O que se cria visualmente será editado e outros elementos serão adicionados de forma que o resultado final seja a conjugação de tais elementos, em movimento.
20
16 ́Tokio Jokio ́ (1943, Norm McCable)
17 ́Scrub me Mama with a Boogie Beat ́ (1941, Walter Lantz); All This and Rabbit Stew (1941, Tex Avery).
18 ECO, Sobre os espelhos e outros ensaios, 1989.
17 ́Scrub me Mama with a Boogie Beat ́ (1941, Walter Lantz); All This and Rabbit Stew (1941, Tex Avery).
18 ECO, Sobre os espelhos e outros ensaios, 1989.
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